
o afogamento
meu sonho
é ser um corpo sem órgãos
mas sou um órgão sem corpo
sem notas para tocar,
um órgão sem catedral,
um órgão
cem corpus

o afogamento
meu sonho
é ser um corpo sem órgãos
mas sou um órgão sem corpo
sem notas para tocar,
um órgão sem catedral,
um órgão
cem corpus

diable royale
quatro, nove, dez
doze, dezessete!
vinte...
[será que não estou velho já?
vinte e um!
mas o dealer me diz
que não é blackjack, é 20
hora de (a)pagar as fichas

balão
Fui levado até a oficina de Adão
para ser calibrado.
Colocaram o compressor em minha boca,
fui inflado até me esferizar,
para ser solto pelos ares.
Voei.
Cheio de mim mesmo, e de ar.
Me inclinando contra o vento
para decidir meu rumo nos céus.
Quase fui triturado pela turbina
que veio me buscar.
Cheguei perto demais do sol,
mas meu nome não é Ícaro
então o abracei.
Só estourei quando caí no mais completo vácuo,
após a morte de todas as estrelas.

inerte
a criança acorda de mais uma noite de sono
decide finalmente ser o algoz. uma pedra
escolhida a dedo por ser uma pedra qualquer
ela arremessa a pedra como se alcançasse algo
mas a pedra não quica no rio
afunda
levada pelas correntezas
a pedra não lutou contra o menino
arrastada por todo o leito fluvial
atingindo diversos peixes
mas sem tocar nenhum
a pedra conhece todos os oceanos,
todos os leitos, todo a predação
tantas oportunidades de metamorfose
se tornar bauxita, rubi, topázio
participar de aneis, armaduras, parafusos
mas ela permanece sendo arrastada
sem questionar
sem desviar
sem tentar
mesmo contemplando o ardor das rochas magmáticas
as esculturas criadas do mármore
até mesmo a velocidade do silício
uma massa solta
indiferente à fundição que a espera
a pedra quer ser escolhida em paz
sem sedimentar sua existência
até virar mais uma pedra
não vou, não sou, eu quero
quero ser arremessado
um Geworfenheit
afundando até morrer

besouro
Sempre fui de brincar
com besouros. Deixando-os de ponta cabeça,
vendo se contorcerem,
sem desconfiar que quando enfim voltassem,
logo seriam pisoteados.
Quando a vida me deu antenas,
nem tentei me levantar.

a insônia tem sabor
a insônia tem sabor
de sonhos ainda não começados
na iminência de se realizarem
mas impedidos pelo ruído estridente
do maquinário cerebral
sonhos que nunca verão a luz do dia
tampouco a luz do sono
oriundos de uma mente frágil e inquieta
incapaz de ter um pensamento
[quem me dera um pesadelo!]
para que uma fagulha de vida
nascesse em minhas entranhas
a insônia tem sabor de mágoa
uma cachoeira de lágrimas salgadas
que flui pelas correntezas do arrependimento
eternos erros passados
e infinitas certezas de falhas no futuro
a mais completa certeza do erro
é pensada de maneiras infindáveis
na cama de um lado para o outro
do outro para o lado
certeza da decepção cometida
minha mente com sono
oficina de insegurança
a insônia tem sabor de morte
uma morte da esperança
esperança de talvez acordar cedo para um novo dia
tem sabor podre da morte
que se esconde sob minha pele
deste meu corpo que dorme até cinco da tarde
[em uma terça feira comum]
a insônia tem sabor
agora, de tanto pensar em sabores
além de cansado e irritado
estou com fome

banho
hoje no chuveiro ocorreu um banquete
enquanto os pensamentos vadios invadiam violentamente a minha visão
junto com os desafinados pingos d'água
brotou-me a vontade de saborear o belo sabonete que lá estava
numa mordida me deliciei com tal sabor
limpo e de frutas cítricas
que nenhum doce se assemelha
encantado com o restaurante
busquei ajuda do garçom
completei um drink de shampoo
me embriagando de forma espiralesca
quando me dei conta, estava bêbado
completamente lisergiado
a visão turva, expelindo coisas medonhas
lá do fundo de minhas entranhas
desligado o chuveiro
vou-me embora de meu magnífico jantar
mas a saciedade de tão bela refeição
faz-me titubear em meus oscilantes passos
deslizando pelo vômito com bolhas de sabão
aterrisando duro eu bato a cabeça
no gélido chão
colorindo minha linda banheira
num expressionismo majestral
feito de óleo, guache, e meu fluído cerebral
“Felizmente está bem cheiroso”
pensou o legista horas depois

sonho
perdido
errando nas vielas de
um palco onírico
e a realidade
uma espiral ao mesmo ponto de antes
sonhei com você esta noite
(ou nos vimos semana passada?)
irrelevante
[apenas sentir]
angústias em todo lugar
ferindo minha pele imunda
me faça fugir
[para algum lugar bom
escapo
admiro a imensidão
retorno
minha carcaça corpórea
sou?
prisioneiro da carne
eterno fluido transcendente
não te vejo mais
capto apenas impressões
[que escorrem igual suas lágrimas naquela noite]
do que um dia nós fomos
meu cristalino converge toda a realidade
em uma fotografia opaca de mim mesmo
não esboço mais
nem sentimentos nem razões
nenhum rascunho de alma nasce do meu lápis sem ponta
tão presente e tão longínquo
por dentro grito
[mas não preste atenção
queimo minha face com o rubor
a falsa lanterna que me dá esperança
e proclamo
mas danço conforme o palco
e a plateia
não lembro mais
perdi a lembrança da maciez do seu toque
acho que esqueci quem sou

festas
luzes radiantes rasgando minha retina
dormente
sons estonteantes em minha mente sussurram
ausente
“olhe as perturbações que sua maldita cabeça
sente
não é seu lugar, até quando vai continuar,
demente”
finjo que não ouço, mas está em todo lugar
as vezes penso, se meu lugar não é em marte
longe de tudo isso, quem sabe assim eu seja
feliz