Raphael Karamázov

  • a insônia tem sabor – Poema

    a insônia tem sabor

    a insônia tem sabor
    de sonhos ainda não começados
    na iminência de se realizarem
    mas impedidos pelo ruído estridente
    do maquinário cerebral

    sonhos que nunca verão a luz do dia
    tampouco a luz do sono
    oriundos de uma mente frágil e inquieta
    incapaz de ter um pensamento
    [quem me dera um pesadelo!]
    para que uma fagulha de vida
    nascesse em minhas entranhas

    a insônia tem sabor de mágoa
    uma cachoeira de lágrimas salgadas
    que flui pelas correntezas do arrependimento
    eternos erros passados
    e infinitas certezas de falhas no futuro

    a mais completa certeza do erro
    é pensada de maneiras infindáveis
    na cama de um lado para o outro
    do outro para o lado
    certeza da decepção cometida
    minha mente com sono
    oficina de insegurança

    a insônia tem sabor de morte
    uma morte da esperança
    esperança de talvez acordar cedo para um novo dia
    tem sabor podre da morte
    que se esconde sob minha pele
    deste meu corpo que dorme até cinco da tarde
    [em uma terça feira comum]

    a insônia tem sabor
    agora, de tanto pensar em sabores
    além de cansado e irritado
    estou com fome
  • banho – Poema

    banho

    hoje no chuveiro ocorreu um banquete
    enquanto os pensamentos vadios invadiam violentamente a minha visão
    junto com os desafinados pingos d'água
    brotou-me a vontade de saborear o belo sabonete que lá estava

    numa mordida me deliciei com tal sabor
    limpo e de frutas cítricas
    que nenhum doce se assemelha

    encantado com o restaurante
    busquei ajuda do garçom
    completei um drink de shampoo
    me embriagando de forma espiralesca

    quando me dei conta, estava bêbado
    completamente lisergiado
    a visão turva, expelindo coisas medonhas
    lá do fundo de minhas entranhas

    desligado o chuveiro
    vou-me embora de meu magnífico jantar
    mas a saciedade de tão bela refeição
    faz-me titubear em meus oscilantes passos
    deslizando pelo vômito com bolhas de sabão
    aterrisando duro eu bato a cabeça
    no gélido chão
    colorindo minha linda banheira
    num expressionismo majestral
    feito de óleo, guache, e meu fluído cerebral

    “Felizmente está bem cheiroso”
    pensou o legista horas depois
  • sonho – Poema

    sonho

    perdido
    errando nas vielas de
    um palco onírico
    e a realidade
    uma espiral ao mesmo ponto de antes

    sonhei com você esta noite
    (ou nos vimos semana passada?)
    irrelevante
    [apenas sentir]

    angústias em todo lugar
    ferindo minha pele imunda
    me faça fugir
    [para algum lugar bom

    escapo
    admiro a imensidão
    retorno
    minha carcaça corpórea
    sou?
    prisioneiro da carne
    eterno fluido transcendente

    não te vejo mais
    capto apenas impressões
    [que escorrem igual suas lágrimas naquela noite]
    do que um dia nós fomos
    meu cristalino converge toda a realidade
    em uma fotografia opaca de mim mesmo
    não esboço mais
    nem sentimentos nem razões
    nenhum rascunho de alma nasce do meu lápis sem ponta
    tão presente e tão longínquo
    por dentro grito
    [mas não preste atenção

    queimo minha face com o rubor
    a falsa lanterna que me dá esperança
    e proclamo
    mas danço conforme o palco
    e a plateia

    não lembro mais
    perdi a lembrança da maciez do seu toque
    acho que esqueci quem sou
  • festas – Poema

    festas

    luzes radiantes rasgando minha retina
    dormente
    sons estonteantes em minha mente sussurram
    ausente
    “olhe as perturbações que sua maldita cabeça
    sente
    não é seu lugar, até quando vai continuar,
    demente”
    finjo que não ouço, mas está em todo lugar
    as vezes penso, se meu lugar não é em marte
    longe de tudo isso, quem sabe assim eu seja
    feliz