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  • Comida de pinguim – Conto

    Comida de pinguim

    Uma sensação, é assim que a brisa do mar se parece. Não uma visão da areia, nem o gosto do sal. Quando estou doente, os sonhos ficam turvos. Estranhos, opacos, com sons que não existem, visões falsas, tudo é oblíquo.
    Não sonhei essa noite. Ou melhor, eu sonhei, mas não foi uma coisa lúdica como os sonhos que normalmente tenho.
    Começou com um abraço esquentado pelo dia, acariciando o mar que o barco perturbava. Mas a tormenta soprou nossa vela. Um fôlego tão grande, cruzamos em segundos a estrada marítma. Num piscar de olhos, não estávamos mais debaixo do Sol de verão. Estava frio, mamãe estava tremendo, blocos de gelo nos rodeavam.
    Eu não vejo nada, não sinto nada, mas ao mesmo tempo eu sinto tudo, ouço o mar, o fluxo indo e voltando calmamente. Ouço o rúgido da tempestade, que começa o meu despertar. Assisto os restos da lancha indo embora. Papai estava agarrado no último pedaço de madeira. Comida de pinguins, é isso que ele será.
    Só o que vejo, uma fanfarra de pinguins, tão bonitinhos. Pinguins destroçando meu papai, pulando em cima do hipotérmico cádaver de mamãe.
    Agora só restavam os pinguins, das mais variadas alturas e espessuras. Toda a família de pinguins. O líder usava seu bico para arrancar suas vísceras, e todo o bando comemorando. Não pensei que os pinguins pudessem ser pagãos, eles devem ter nos confundido. Ver papai digerido sendo destroçado por essas criaturas tão bonitinhas. Não consigo encarar.
    Os pinguins se deliciaram no banquete. Deve ter sido gostoso, enquanto eu assistia a tudo, sendo segurado por outras dessas aves glaciais. Não vomitei, eu não estava vendo direito, os pinguins pareciam uma coisa só. Eles se amalgamavam, se tornando uma única massa com todo o sangue. Pinguins vermelhos, é só o que eu ouvia, a buzina deles, não me deixam ouvir minha voz.

    Melhor voltar a dormir, já perdi o ímpeto de encarar as águas novamente. Me deitar na areia até o sol nascer. Esperando que o oceano me leve, me congele em meio aos icebergs.
    Quem sabe, eu possa encontrar um pinguim.
  • banho – Poema

    banho

    hoje no chuveiro ocorreu um banquete
    enquanto os pensamentos vadios invadiam violentamente a minha visão
    junto com os desafinados pingos d'água
    brotou-me a vontade de saborear o belo sabonete que lá estava

    numa mordida me deliciei com tal sabor
    limpo e de frutas cítricas
    que nenhum doce se assemelha

    encantado com o restaurante
    busquei ajuda do garçom
    completei um drink de shampoo
    me embriagando de forma espiralesca

    quando me dei conta, estava bêbado
    completamente lisergiado
    a visão turva, expelindo coisas medonhas
    lá do fundo de minhas entranhas

    desligado o chuveiro
    vou-me embora de meu magnífico jantar
    mas a saciedade de tão bela refeição
    faz-me titubear em meus oscilantes passos
    deslizando pelo vômito com bolhas de sabão
    aterrisando duro eu bato a cabeça
    no gélido chão
    colorindo minha linda banheira
    num expressionismo majestral
    feito de óleo, guache, e meu fluído cerebral

    “Felizmente está bem cheiroso”
    pensou o legista horas depois